Tadinha, já nem sabia onde estava. Havia quase três anos que morava conosco. Nunca fora muito carinhosa, nem afável, nem cozinheira, era daquelas que compensava com bens materiais. Confesso que gostava, mas também nunca provara do outro lado da moeda. Não provar do outro lado da moeda pode ser um problema. Foi-nos um problema, e eu sabia desde o começo. Ela tinha uma daquelas doenças incuráveis, tipo o amor, sabe? Aquele que você vai ficar dependente pra sempre, até que apareça a cura. E parece estar nem perto. Aos que rodeiam, vai causando aquele misto de amor e ódio. Ódio por não sabermos como curar e por, em certos dias, simplesmente querermos que essa agonia desapareça. Amor... esse nem tem explicação. A palavra como signo já perdeu o seu efeito de mediadora e o que se pode fazer é deixar sentir ao bel prazer das brincadeiras da vida.
Cambaleante, batia-se contra os móveis, só apreensão em quem presenciava tal cena. Em uns dias, estava mais ferina, agressiva, não poderia ser contrariada. Uma tristeza só ver chinelos dentro da geladeira. Tristeza maior ainda era vê-la cambaleando. Eu, tão cambaleante quanto ela, não podia fazer nada. Passava por momentos difíceis. Corria para segurar quando achava que ía cair. Nessas horas, você vê o quanto você ama sua família, outrora chamada de base e suporte. Era difícil respeitar toda essa situação de silêncio, o hiato causado por tanto sofrimento. Mas é uma doença que a vida joga no nosso colo e grita “lide com isso”. O resto é talento. Perguntava a mesma coisa muitas vezes. Perguntava-se a mesma coisa mil vezes. Perguntava-me a mesma coisa milhões de vezes. Será que um dia isso vai passar? Continuava cambaleante, batendo nos móveis e ameaçando quebrar aquele velho cristal que você guarda em casa com todo o amor do mundo sem nem saber o motivo; a explicação fajuta é que ele faz parte da sua história, você não consegue admitir que tem um amor inexplicável por aquilo e usa o comodismo como desculpa.. e eu olhava pra ela, parecia bem, era aí que a raiva tomava tento. Como pode parecer tão bem se está doente? Logo em seguida, eu via que era assim mesmo, essa doença, altos e baixos. Eu confesso que senti pena. Uma pena boa, se é que isso pode acontecer. Pena de ela esquecer quem ela era de vez, quem eram as pessoas que realmente importavam. O pior deve ser esquecer-se, o que você é, o que você construiu. Ela estava se permitindo implícita e involuntariamente. Isso me doía tanto. Tadinha. Ouvir outros comentando o que ela fazia, as coisas estranhas que ela fazia, fruto da doença, me deixava tão doente quanto. Eu queria me convencer que perguntar mil vezes por alguém que já morreu é normal, que colocar chinelos na geladeira é normal, que terminar o banho e esquecer o chuveiro ligado é normal, que esquecer quem você amou é normal, que estar num mundo completamente novo fazendo o que você jamais pensou em fazer é normal, que fazer as pessoas ao seu redor sofrerem é normal, que beber do copo dos outros à noite é normal, que depois de tanto tempo ainda não ter esquecido tudo é normal. Escutar alguém dizer o que ela estava fazendo noite à fora era tão desnecessário. Só me fazia ter mais medo. Eu não queria ninguém falando dela, do que ela poderia se tornar, ela era ainda minha vovó, que eu amei durante um ano e nove meses. Não sei se foi só isso, mas é isso que eu consigo e devo contar. Eu queria tanto trazê-la de volta, curá-la, deitá-la no meu colo novamente, mesmo eu não sendo tão carinhoso e dizer que eu a amava, que ela não precisava passar por isso. Tirá-la daquela solidão do esquecimento.
Acordava no meio da noite e queria tomar banho, uns calores estranhos. E a minha missão de pessoa insone era segurar a mão levemente e conduzi-la de volta. A toalha já ía no ombro e o rosto assustado. Tomava um copo com água e dava pra enganar por mais algumas horas até que ela acordasse novamente. Eu já não sei se estaria ali acordado pra ajudar ou se já teria caído em sono profundo. Ela adorava beber água. Abria a geladeira incontáveis vezes ao dia. Tentava pegar um copo e cambaleava, ameaçando derrubar todos os outros. “Cuidado!”. Era só o que eu podia fazer: alertar.
Ela costumava me chamar e eu não dava atenção. Quem não cansa? Chamou-me por três vezes e eu disse não. O não faz parte de todo esse processo. Até que resolvi ceder. Ela havia me chamado para algo muito urgente. Conduziu-me pelo braço até o closet. “Eu preciso que você me ajude, que você me explique um negócio.”.
- Tá vendo? - perguntou-me com aquela voz mais que ansiosa, desesperada quase.
- O quê?
- Eu estou presa ali e não consigo sair. Olhe! Sou eu!
Quando dei por mim, meus olhos já íam cheios d’água. Ela ainda conseguia se reconhecer, mas tudo ao redor não fazia mais sentido. Aquelas nossas imagens projetadas naquele espelho e ela lá sem entender. Sem entender que eram apenas reflexos, reflexos da situação atual, de tudo que aquela doença fazia com ela. Ela sentia-se presa à ela e, tadinha, não sabia que tinha de sair daquilo. O reflexo da porta no espelho pareceu uma saída pra ela.
- Tá vendo? Ali tem até uma porta! E por que eu não consigo sair?
- Vó, isso é só um espelho. – Minha voz tinha mais desespero que a dela.
- Meu filho, pelo amor de Deus, me tire dali. Eu já fui e voltei e não consigo sair.
Eu era só angústia e medo. Segurei os braços dela e disse:
- Vó, calma! Eu tô aqui! – foi tudo que consegui.
Ela não lembrava o que um espelho significava. Mas isso bastou. Ela conseguiu se acalmar. Eu, não. Chorei por muitos meses, que pareceram eternidade. E a eternidade tem me acompanhado durante todo esse período. Talvez seja só o simples desejo de eternidade. Nesses momentos, eu sentia todo o meu amor por ela.
Certa vez havia me dado um copo. Não sei o motivo pelo qual ele se tornou o presente mais especial de todos. Acho que era justamente por isso. Por não ter explicação e eu não ter essa necessidade de resposta. Quem disse que não é possível amar um copo? Eu o amava e o protegia. E bebia daquela água sem medo algum (mentira, sempre há o medo intrínseco). Mas, de verdade, ninguém poderia sequer encostar. Até que, um dia, ela foi abrir a geladeira de novo. Ao acaso, estava eu próximo, nem sei fazendo o quê. Repetia que queria beber água. Talvez nem tivesse sede; acho que não lembrava que havia bebido minutos atrás. Estava arrumada para sair. Foi andando em direção à bandeja, e ele estava lá. Como se fosse apenas mais um no meio de outros, mas nem era. Destacava-se logo. Alto, bonito, diferente, cheio de arte, a boca grande. Lindo, lindo. Uma perna após a outra nem sempre é a melhor forma de andar, ainda mais quando se faz uso de uma bengala, um suporte, pode ser que tudo se confunda. Cambaleante. É tanto que tropeçou e bateu com tudo na bandeja. E eu o vi balançar, hesitar. Foi para um lado, foi para o outro, não sabia se caía ou não caía. E eu corri. Não mais que quatro passos. Ela quase cai dessa vez. Todos os outros caíram, e eu só consegui salvar ele. Só ele. E ele já estava quase caindo. Ela conseguiu segurar-se. E eu o abracei. “Vó, cuidado, a senhora quase quebra o meu copo!”. Eu abracei tão forte que quase o quebrei eu mesmo. Daí, decidi que nunca mais beberia nele. Guardei-o no fundo do meu guarda-roupa.